terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Indicação - “Cidades Invisíveis” (Emili Rosales Castellá)


O catalão Emili Rosales Castellà é a grande revelação entre os autores contemporâneos europeus. Sua escrita segura, firme, fluente e poética tece com habilidade ímpar um mundo de sonhos e miragens que perseguem o protagonista desde sua infância. O escritor pode estar narrando suas próprias experiências através de seu altergo, mesclando ficção e realidade na trajetória de Emili Rossel, famoso galerista, marchand e amante das artes e da cultura. Mas, na verdade, não é imprescindível ter essa certeza.

Em sua obra "A Cidade Invisível", o autor retrata a busca da identidade de seus personagens principais. Nela se desenrolam duas histórias em tempos distintos, porém na mesma esfera espacial – a Catalunha do século XVIII e a atual. A história dentro da história corre paralela à trajetória de Emili, e encontramos nos dois heróis de suas respectivas épocas semelhanças marcantes, tanto nos ideais quanto em suas trajetórias, na procura de um sonho que, na verdade, representa a descoberta de si mesmos.

Emili cresce em meio às ruínas de uma cidade que não se concretizou, e que se torna para ele e os amigos uma obsessão. Neste recanto um tanto mágico ele realiza os principais achados de sua existência. Aí ele vive, durante a adolescência, os primeiros momentos de sua vida afetiva, que repercutem definitivamente em sua trajetória emocional. Durante algum tempo, longe de sua terra natal, Sant Carles, que ele passa a visitar apenas nos finais de semana, as imagens da Cidade Invisível se desvanecem, mas logo se reacendem quando, anos depois, Emili misteriosamente recebe pelo correio uma cópia do Memorial da Cidade Invisível, um manuscrito do século XVIII. Confuso, sem saber quem o enviou, ele inicia sua tradução, e mergulha de cabeça nas novas revelações que este documento enigmático lhe reserva.

Eu já não pensava mais na Cidade Invisível. Só em sonhos talvez. Até que, poucas semanas atrás, recebi um envelope sem remetente que continha a cópia de um longo documento manuscrito, cuja letra ondulada, elegante, com uma sucessão de curvas e traços estirados, logo me chamou a atenção. Ao fazer uma primeira e calma incursão por suas páginas — não estava acostumado com aquela caligrafia —, me dei conta de que se tratava de uma espécie de livro de memórias de um arquiteto do século XVIII, um tal de Andrea Roselli.

Estava escrito em italiano e levava um título que não se poderia assegurar que fosse da mesma mão que escreveu o restante do texto: Memorial da Cidade Invisível. Meu Deus, a Cidade Invisível! Imediatamente me lembrei da primeira vez que ouvi aquelas palavras, há muitos e muitos anos. Íamos brincar na Pedreira, aquela gigantesca cavidade aberta na colina que da serra de Montsià se debruça indecisa sobre o mar, na baía. Caminhávamos encolhidos entre as pedras e valetas de terra e parávamos em poças úmidas, esverdeadas, lamacentas, onde apanhávamos barro com as mãos e o transformávamos em figuras monstruosas. Por vezes alguém do grupo escorregava e seu casaco ficava que era uma lama só.

Neste memorial, encontramos a trajetória do arquiteto Andrea Roselli, e seguindo as pistas que ele proporciona tanto ao leitor quanto a Emili, estes se transportam ao século XVIII, e desvelam o passado da Cidade Invisível – os projetos do rei Carlos III de criar um núcleo urbanístico, centro comercial, artístico e cultural, a nova capital da Espanha, bem no âmago do reino catalão, no delta do Rio Ebro, completamente espelhada na cidade de São Petersburgo, criada também a partir do nada, e com os mesmos propósitos, na Rússia do czar Pedro, o Grande. O rei desejava, através da construção de sua Sant Carles, rever a Nápoles, a corte esclarecida que ele teve de abandonar para governar a Espanha.
Ao percorrer os caminhos de Andrea - seus sonhos, dilemas, conflitos, amores, desilusões e, principalmente, a busca de uma cidade que o abrigue, entre tantas que conheceu, de um lugar que seja seu -, Emili vai redescobrindo seu próprio passado, que para ele ainda guarda passagens obscuras e misteriosas, as quais ele não tem coragem de desvendar. A narrativa, envolvente e poética, seduz pouco a pouco o leitor, e lhe reserva passagens belíssimas, reflexões profundas sobre a existência, revelando-se assim uma obra de teor universal, com a qual nos identificamos, independente das diferenças culturais.

Andréa revela-se um personagem fascinante, à procura de seus sonhos e, ao mesmo tempo, acalentando o desejo de encontrar uma cidade que não passe mais como as outras que conheceu, diante da qual ele não precise mais partir. Mais que isso, ele aspira deixar em sua vida uma marca, algo que lhe permita não ser esquecido, transcender sua profunda solidão e a própria morte, conquistando de uma forma ou de outra, na arte ou no amor, a imortalidade. Emili também tem suas utopias, que por vários caminhos conduzem à Cidade Invisível – lá estão as respostas para os mistérios que o perseguem, seu futuro e seu passado, as tardes que ficaram para trás e as promessas de novos dias, a noite do tempo e as luzes que insistem em despertar, junto com as memórias adormecidas.

As figuras femininas são fundamentais nas veredas que Andréa e Emili percorrem. Cecília e Maria no século XVIII; Sofia e Ariadna no século XXI; elas iluminam e determinam os caminhos de ambos. De um lado, a exuberância, a beleza sofisticada, o gosto do proibido, dos perigos femininos; do outro, a simplicidade, a naturalidade, a espontaneidade, a pureza e a inocência. O autor ressalta em suas heroínas o poder do olhar, sua importância nos jogos de sedução e nos diálogos do amor, na leitura da alma de cada uma delas e na descoberta de histórias ocultas. Sabe-se que o olhar tem um significado profundo, tanto na mitologia quanto na filosofia, e o escritor sabe explorar muito bem essa potencialidade na caracterização de suas protagonistas.

Seja como for, de uma forma negativa ou positiva, essas mulheres influenciam e estimulam a busca de seus companheiros, impedindo-os de simplesmente esquecer o passado e seguir adiante. As memórias parecem ter um parentesco com o feminino nesta obra – aliás, é uma entidade feminina a responsável pelos caminhos da Memória, a deusa Mnemosyne -, e neste ponto destaca-se o papel de Ariadna, que, segundo a mitologia grega, era filha de Minos, rei de Creta, e de Pasífae. Ela se une a Teseu, ateniense inimigo de sua família, para destruir o Minotauro, encerrado pelo rei em um labirinto construído por Dédalo. Para ajudá-lo, ela lhe oferece uma espada mágica e um novelo de lã para que ele se guie dentro da construção labiríntica e, após enfrentar e matar o monstro, ele possa retornar e sair do labirinto. Abandonada posteriormente por Teseu, ela se casa com Baco, que ao encontrá-la desolada em uma ilha deserta, apaixona-se por ela.

Na leitura deste livro surpreendente, o leitor encontrará várias analogias entre a história mítica de Ariadna e Teseu e os caminhos reais percorridos pela heroína e Emili, uma narrativa de amor e abandono, ilusão e desilusão, encontros e desencontros. Na sucessão dos acontecimentos, o autor, através de sua Ariadna, tece os fios que conduzirão Emili de volta ao passado, não só ao tempo histórico, mas também ao encontro de sua identidade, das respostas que ele busca, mesmo sem perceber - sob a máscara do interesse pela História -, e que ele encontrará não através dos velhos caminhos conhecidos, mas sim tateando por novas veredas, muitas vezes sombrias e arriscadas, das quais ele não sairá ileso. Nas sombras do passado, porém, ele vê brotar a luz que poderá clarear não só o passado dos fatos históricos, mas igualmente os pontos obscuros de sua existência.

São tantos os fios que se desdobram ao longo da narrativa, que é surpreendente perceber, no final da leitura, como o autor consegue entretecer todos eles, com uma maestria sem precedentes, conciliando e conjugando as eras, revelando a verdade oculta na noite do tempo. Não é ocasional, portanto, este autor ter provocado surpresa e admiração entre os críticos, e esta obra ser vencedora do Saint Jordi, o prêmio mais importante da literatura contemporânea da Catalunha. Emili Rosales irrompeu no cenário literário com os livros de poemas Ciutats i mar (1989) e Els dies i tu (1991). Posteriormente ele publicou La casa de la platja (1995), Els amos del món (1997) e Mentre Barcelona dorm (1998). Na lista dos mais vendidos, este é um dos romances mais deslumbrantes dos tempos atuais, nos quais predominam best-sellers construídos sem muito esmero e carentes de preocupações estilísticas.


CIDADE INVISIVEL, A
Autor:  ROSALES, EMILI
Editora: NOVA FRONTEIRA
Assunto: LITERATURA ESTRANGEIRA-ROMANCES
ISBN :  8520919049
ISBN-13:  9798520919049
Livro em português
Brochura
1ª Edição - 2006 - 352 pág.

E em casa não voltei a falar da Cidade Invisível, embora com meus colegas continuasse encontrando indícios da sua existência, ou do seu desaparecimento. Com o tempo, aprendi que só existe o que se perde; sejam as cidades, os amores ou os pais. Um dia saímos andando pela praia em direção ao Sul, nos rochedos e grutas, desobedecendo às regras familiares e, remexendo debaixo de um monte denso de folhas de palmeira, atrás do emaranhado de galhos de uma figueira, descobrimos a boca de uma caverna, na qual não pudemos penetrar por mais de uns dez metros. Apesar disso, aquela era uma prova suficiente para termos certeza de que se tratava de uma outra saída da Cidade Invisível.

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